Victor Aranha

Victor Aranha

O Fabulista

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Encruzilhada

Em algum lugar em sua cidade, em uma das esquinas de um cruzamento, está sentado um senhor. Um homem simples, seu cabelo ralo da cor de fumaça e sua pele marcada por anos demais, ele vigia as casas onde as ruas se cruzam. Normalmente isso significa apenas estar sentado em sua cadeira, e por isso ele é modestamente gratificado.

Ao lado do homem está o cachorro amarelo, conhecido assim por ser ao mesmo tempo um cachorro e amarelo.  Ele também possui uma cadeira que usa ocasionalmente, enquanto mantêm sua própria vigília. Ele não é pago, mas recebe alguns biscoitos esporádicos.

Juntos eles passam os dias entre as casas elegantes e na sombra das árvores, observando o movimento, caminhando a passos lentos pelas quatro direções do cruzamento para garantir que tudo esteja tão bem quanto esperado. As pessoas os cumprimentam ao saírem de suas casas, e os ‘bom dias’ são prontamente respondidos com acenos de mão e cauda enquanto eles se encarregam de varrer as folhas que cobrem a rua (tarefa que ocupa bem mais o homem, mas ele não jogaria isso no focinho de seu amigo).

É uma vizinhança tranquila e amigável, o que facilita o trabalho deles, mas isso não significa que não haja trabalho a ser feito. Especialmente à noite. Seja algum moleque com uma lata de spray querendo desfigurar algumas fachadas, um grupo de mal-intencionados procurando uma entrada para saquear as residências ou uma pobre alma tentando deixar oferendas para alguma entidade misteriosa em troca de ganho pessoal, lá estão eles para impedi-los.

Normalmente sua mera presença e alguns sopros de apito bastam para desencorajar os malfeitores, mas às vezes eles precisam se envolver mais diretamente. Como na vez em que treze figuras encapuzadas arrastaram uma jovem atordoada para o meio do cruzamento, onde a prenderam no chão e sacaram uma faca estranha em formado de serpente enquanto recitavam algo que fazia os ouvidos doerem. Foram precisos uns bons latidos e umas vassouradas para dispersar esse bando.

Mas dias agitados assim são bem raros, especialmente para o velho. O cachorro amarelo costuma ficar mais ocupado, seja interagindo com os cães que passam ou assustando gatos e outras coisas que tentam se aproximar por de fora do mundo. O velho às vezes as nota, como sombras estranhas que não deveriam estar lá, quando as folhas das árvores se movem sem que haja vento.

No fundo ele fica muito contente que isso seja o máximo que ele pode ver, pois ele nunca vai esquecer-se do que o cão disse para ele na única vez em que falou, com uma voz mais linda que o primeiro pôr-do-sol que se vê na vida. Ele falou que, assim como o velho guarda uma encruzilhada, ele também, mas é um cruzamento de caminhos diferentes, ligando lugares que ele não quer conhecer.

Sabe como tantos ritos, cerimônias ou seitas, normalmente do pior tipo, exigem um cruzamento para serem realizados? Bom, ao contrário do que se pensa, não basta qualquer cruzamento. Elas falam desse cruzamento, em especifico, que fica não muito longe da sua casa.

Por isso ele deve ser guardado. E mais importante, é por isso que nada deve passar.

Felizmente eles estão lá de guarda, um ajudando o outro, mesmo que nas piores situações o homem tenha pouco a fazer enquanto o cão, seu pelo ardendo como as chamas do sol, seus dentes brilhando como espadas sob a luz divina, impede que o caminho seja cruzado (o cão sabe que tem mais responsabilidades, mas jamais jogaria isso na cara do seu amigo).

Mas claro, o tempo vai passar como sempre faz. O homem há muito tempo não é jovem e logo – com um pouco de sorte – irá se aposentar para desfrutar alguns últimos dias de paz. O cachorro amarelo, por outro lado, vai permanecer lá, como já fazia antes e como irá fazer depois, guardando e esperando o próximo que irá ouvir sua mensagem e tomar o posto ao seu lado.

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