O legado imaginário da Copa das Copas foi embora junto com os turistas. Ficou com os brasileiros a conta da Copa da Roubalheira

Dilma Rousseff, na entrevista coletiva com ministros convocada nesta segunda-feira (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Dilma Rousseff, na entrevista coletiva com ministros convocada nesta segunda-feira (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Texto de Augusto Nunes.

BRANCA NUNES

“O Brasil mostrou que estava capacitado e que tinha todas as condições para assegurar infraestrutura, telecomunicações, tratamento adequado aos turistas, às seleções, aos chefes de Estado que viessem nos visitar. O país se superou e nós teríamos de ter a nota máxima”, cumprimentou-se nesta segunda-feira a presidente Dilma Rousseff, na introdução da entrevista coletiva que prometera conceder ao lado de 16 ministros. O que seria o maior evento do gênero em três anos e meio de governo foi a primeira entrevista da história em que não houve perguntas.

A sabatina que se seguiria ao monólogo de abertura foi abortada pela deserção da entrevistada, que invocou a necessidade de decolar rumo ao encontro dos Brics em Fortaleza para abandonar a zona de perigo. Se tivesse ficado por lá, dificilmente escaparia de ser confrontada com a distância que separa a Copa das Copas, que só o governo vê, da Copa da Roubalheira que a imprensa insiste em enxergar

Nesta segunda-feira, por exemplo, uma reportagem publicada pelo Estadão (leia abaixo) mostrou as reais dimensões do que Dilma chama de “legado”. Os projetos vinculados à infraestrutura eram 83 na lista divulgada em 2010. Caíram para 71 – e a maioria está longe da conclusão. Em contrapartida, os gastos saltaram de R$ 23,5 bilhões para R$ 29,2 bilhões. Até agora.

A malandragem federal incluiu a substituição de trens e monotrilhos por meros corredores de ônibus ─ sem que a despesa diminuísse. Embora o governo ainda não tenha publicado o balanço do Mundial da Fifa, um estudo da Consultoria Legislativa do Senado Federal calculou, em 2011, que a gastança não seria inferior a US$ 40 bilhões.

“Os projetos de construção do VLT de Brasília e de Manaus ficaram no papel”, constatou o Estadão. “O monotrilho de Cuiabá será entregue no segundo semestre de 2015. Em São Paulo, o Expresso Aeroporto, trem que ligaria o centro da cidade a Cumbica, foi cancelado em 2012. E o monotrilho do Morumbi ainda está em construção”. A contabilidade das realizações invisíveis nem inclui promessas delirantes como o trem-bala, que ficou fora da Matriz de Responsabilidades do Mundial.

“Nosso projeto é que esteja integralmente pronto em 2014 ou pelo menos o trecho entre Rio e São Paulo”, afirmou Dilma Rousseff em junho de 2009, época em que era ministra da Casa Civil de Lula. “Pretendemos ter os trens em funcionamento em 2014 porque esta é uma região muito importante em termos de movimentação na Copa”.

Como as obras de mobilidade urbana continuam no papel, os congestionamentos que diariamente atormentam os brasileiros  não paralisaram as cidades-sede graças à decretação de feriados ou pontos facultativos nos dias de jogos e à antecipação das férias escolares por numerosos estabelecimentos de ensino. “Em uma cidade como São Paulo”, lembrou a reportagem, “isso equivale a trocar o deslocamento de seus 10 milhões de moradores pelo de 64 mil torcedores indo para o Itaquerão e outras 30 mil ou 40 mil pessoas concentrando-se na Fan Fest e bares ao redor no centro da cidade, bem como na Vila Madalena, na zona oeste”.

Essa maquiagem também foi feita, por exemplo, nos corredores do BRT (espécie de corredor exclusivo de ônibus) Norte-Sul e Leste-Oeste de Recife e no metrô de Salvador. No primeiro, apenas quatro das 45 estações funcionaram. Nos dias de jogos, os dois meios de transporte só puderam ser utilizados por aqueles que portavam ingressos.

A boa qualidade do transporte aéreo, aprovada por 76% dos turistas estrangeiros na pesquisa Datafolha divulgada nesta terça-feira, resultou de operações especiais organizadas pelas próprias empresas, uma vez que as obras previstas para os aeroportos não foram concluídas a tempo. Em Fortaleza, enterrou-se R$ 1,7 milhão num puxadinho construído para fingir por 90 dias que o aeroporto ficou maior.

“No aeroporto de Brasília, o piso na segunda-feira à noite pós-Copa já estava imundo”, observou o jornalista Fernando Rodrigues na Folha desta quarta-feira. “O local continua em obras. Durante o torneio houve a preocupação de lustrar o que era possível. Agora, nos guichês das companhias aéreas já há menos gente trabalhando. Padrão pós-maquiagem”. O aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, além de não ter ampliado o terminal de passageiros no prazo combinado, provavelmente terá rescindido o contrato com a construtora. Motivo: os atrasos recorrentes, que adiaram para 2016 o que já deveria estar em funcionamento.

“Único segmento que não sofreu baixas”, como ressalva a reportagem do Estadão, os estádios consumiram R$ 8 bilhões – 98% originários dos cofres públicos –, fortuna 50% maior do que a prevista em 2010. Aprovadas por 92% dos estrangeiros – também segundo o Datafolha –, as arenas Padrão Fifa começam agora a escancarar o Padrão Dilma.

Quem foi à Arena Pantanal nesta terça-feira para assistir ao jogo entre Vasco e Santa Cruz, pela série B do Brasileirão, espantou-se com o lixo e o entulho dentro e fora do estádio, com a iluminação precária no entorno, com o policiamento quase inexistente e com a falta de informação. “O chão que antes brilhava apesar de existir mais gente, hoje está imundo, há muita poeira no local e os espaços lounges estão caindo aos pedaços”, descreveu o barman Junior Santana, que trabalhou no local durante a Copa, numa reportagem publicada pelo Estadão nesta quinta-feira. Na sala de imprensa não havia cadeiras, mesas, cabos de energia nem internet wi-fi.

Aprovada por 95% dos turistas, a hospitalidade dos brasileiros é uma das poucas coisas que permanecerão por aqui com o fim da Copa. As obras para inglês ver se foram na esteira dos estrangeiros que voltaram para casa. O humor nacional tenta resistir ao péssimo desempenho no campo da economia. Como o legado prometido pelo governo, já é bem menor do que foi.


Segue abaixo a íntegra da reportagem do Estadão, publicada em 14 de julho de 2014:

Copa deixa legado de infraestrutura menor e mais caro do que o prometido

LOURIVAL SANT’ANNA E MARINA GAZZONI

A Copa do Mundo deixa um legado de infraestrutura para o Brasil muito menor do que o prometido quatro anos atrás – e a um custo mais alto. Em 2010, o governo anunciou que o evento atrairia investimentos de R$ 23,5 bilhões em 83 projetos de mobilidade urbana, estádios, aeroportos e portos. Parte das obras ficou no caminho e só 71 projetos foram mantidos na lista.

Segundo levantamento feito pela rede de repórteres do Estado nas 12 cidades-sede, as obras entregues para a Copa e as inacabadas somam R$ 29,2 bilhões – mesmo tendo sido substituídos em várias cidades projetos mais ambiciosos, como trens e monotrilhos, por modestos corredores de ônibus. Ou seja, o país gastou mais para fazer menos e com menor qualidade.

Em setembro de 2013, o Ministério dos Esportes apresentou sua última consolidação das obras da chamada Matriz de Responsabilidade da Copa, já com a exclusão dos projetos prometidos em 2010 e abandonados. Os 71 projetos confirmados somavam então R$ 22,9 bilhões.

Esse resultado significava que os governos federal, estaduais e municipais e a iniciativa privada gastariam 3% a menos do que o previsto em 2010 para fazer 15% a menos em número de obras. Os investimentos estavam distribuídos assim: 50,5% para o governo federal, 33,1% para os Estados e municípios e 16,4% para o setor privado. Entretanto, a reportagem do “Estado” constatou que o gasto total, hoje, é ainda maior: R$ 29,2 bilhões, ou 27% a mais do que o anunciado há quatro anos.

A construção dos estádios foi prioridade, seguida dos aeroportos. Mas na mobilidade urbana, o principal legado da Copa para os moradores das grandes cidades, o resultado foi sofrível. De 50 projetos, apenas 32 foram mantidos, o que quer dizer que um em cada dois foi abandonado. De acordo com a matriz consolidada em setembro pelo Ministério do Esporte, o país investiria R$ 7 bilhões em mobilidade urbana para receber a Copa, R$ 4,47 bilhões a menos do que o previsto em 2010.

Inacabadas – Além disso, boa parte das obras não foi entregue a tempo para o Mundial. O levantamento do Estado nas 12 cidades-sede mostra que 74 obras de mobilidade urbana foram entregues e 46 permanecem inacabadas. O número de obras é maior do que o da lista de projetos do ministério porque as prefeituras e governos estaduais, que são as fontes dessa informação, costumam fatiar projetos em várias obras.

Os projetos de construção do VLT de Brasília e de Manaus, por exemplo, ficaram só no papel. Já o monotrilho de Cuiabá será entregue no segundo semestre de 2015. Em São Paulo, o Expresso Aeroporto, trem que ligaria o centro da cidade a Cumbica, foi cancelado em 2012. E o monotrilho do Morumbi ainda está em construção.

O abandono e a não conclusão das obras só não tiveram um impacto maior porque a maioria das cidades decretou feriado ou ponto facultativo para o funcionalismo, além de as férias escolares de julho terem sido antecipadas. Em uma cidade como São Paulo, isso equivale a trocar o deslocamento de seus 10 milhões de moradores pelo de 64 mil torcedores indo para o Itaquerão e outras 30 mil ou 40 mil pessoas concentrando-se na Fan Fest e bares ao redor no centro da cidade, bem como na Vila Madalena, na zona oeste.

O único segmento que não sofreu baixas foram os estádios. Todos os projetos previstos saíram do papel e custaram R$ 8 bilhões ao País – 98% em recursos públicos-, montante 50% acima do previsto em 2010. Mal ou bem, ainda que com parte das arquibancadas provisória, como no Itaquerão, eles ficaram prontos para a Copa, acalmando a Fifa.

Em São Paulo, o projeto original previa a reforma do Morumbi, que custaria R$ 240 milhões e mais R$ 315 milhões em obras do entorno. Com a substituição da obra pela construção do estádio do Itaquera e investimentos no seu entorno, o custo saltou para R$ 1,37 bilhão.

No caso dos aeroportos, o desempenho foi mediano – alguns ficaram prontos, outros, não, mas isso não comprometeu o embarque e desembarque dos torcedores. Obras previstas em aeroportos como Viracopos, Confins, Fortaleza e Salvador não foram concluídas antes do Mundial. “A reforma dos aeroportos era uma necessidade, independente da Copa”, analisa Carlos Ebner, diretor-geral da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) no Brasil. “Mas a Copa era uma motivação para dar um salto de infraestrutura e deixar um legado ao País. Mas nem tudo foi feito e queremos que as obras continuem após a Copa.”

Segundo ele, o caos não ocorreu porque o setor se organizou em uma operação especial e compensou os entraves de infraestrutura. Foi o que aconteceu também com o transporte urbano, beneficiado pelos feriados e linhas especiais de ônibus para os torcedores. Terminada a Copa, a vida volta ao normal.